Tuesday, July 17, 2007

O MOMENTO PERFEITO (sobre JLB)




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JLB era perfeito, não no sentido de uma singularidade ou de um esforço, mas porque se cruzara, quer no seu tempo, quer no nosso tempo, com a perfeição dando disso frequentes testemunhos. A perfeição é possivel no espaço e nos corpos – há uma evidente dificuldade em perceber como é que a perfeição, que nasce nos antros dos números e nas ternuras da geometria (de acordo com os pitagóricos, Platão e muitos outros), incarna poéticamente onde quer que seja. Essa tem sido a tarefa da física e de muitas outras nobres ciências que lhe são afins. No entanto algo nos tem escapado porque muito se fala, como se fosse uma evidência banal, incontornável, irónica ou mesmo trágica, do desaparecimento da arte, muito para além dos seus centários e badalados fins. JLB testemunha-nos uma perfeição que garante a arte, talvez porque para JLB a perfeição seja algo inerente à morte. Para JLB é possivel que a morte da arte seja a arte nos momentos da sua morte, e consequentemente os momentos dourados e com sabor a pastéis de açafrão da eternidade.


2

Eu, Pierre Delalande, tenho muita dificuldade em situar-me nessa esfera (sim, é mesmo esfera!) da perfeição. Não sei se alguma vez me cruzei físicamente nalguma enfadonha e badalada manifestação do art world com James Lee Byars, porque as personagens excentricas abundam, a minha memória é dúbia e o tempo tem vindo a distriar-me de muitas coisas. Vi, em Dezembro de 1994 em Valência, no bairro del Carmén, numa espécie de mosteiro, uma exposição de JLB chamada «The Perfect Moment». Nesse momento a exposição não foi (para mim) um momento perfeito porque não estava para ele preparado. A minha imperfeição estava atrasada, e provavelmente estará sempre atrasada, para essa declarada perfeição, assim como muitas outras indeclaradas. Mas era uma exposição impressionante e transpirava a sagrado. Senti que a minha escala de homenzinho e de artista periférico era bastante mais pequena que as obras de Byars e senti uma certa inveja misturada, òbviamente, com admiração. JLB foi-se-me entranhando um pouco na minha vida, mas foi-se entranhando nela através do pensamento, porque o pensamento é outra versão mais assimilável da perfeição. Muitos repetem o velho dito de que o pensamento é cinzento e que a vida é ardente como as cores. O pensamento até poderia ser cinzento, como as paisagens chinesas que se enrolam e desenrolam, mas a exposição de JLB fez-me ver que o pensamento era forte como as cores, embora também se saiba deleitar em súbtis cinzentos que são ao mesmo tempo tão excitantes e relaxantes quanto algumas paisagens chinesas pintadas. Muitos teóricos gostam de ver a estética chinesa como uma sensibilidade ao ensonso e às menores subtilezas. Byars viveu no Japão e canibalizou uma certa hipersensibilidade oriental, uma disseminada sensualidade do toque que nos oferecem determinados materiais. Mas os pintores e os caligrafos possuem uma agudeza na vivência das superfícies que opera como uma tremenda intoxicação – a seda ou o papel, meteriais caros a JLB, não nos levam à sábia acalmia mas a uma sobrexcitada alquimia.


3

A vida dos artistas é aparentemente enfadonha. Não são homens de acção e não se aventuram muito, para além de exemplos um tanto ou quanto raros como a ida idealista de Gauguin para as bandas do Pacifico. Os escritores, regra geral, procuram o sumo da vida em experiências àcidas, excitando-se frequentemente com o exotismo criminoso das paisagens e o caracter eminentemente destrutivo e atractivo dos outros. Os artistas são mais burgueses. Mesmo Gauguin veio morrer à sua França. Apesar disso há um apelo romanesco muito forte nas vidas dos artistas. Vasari apercebeu-se, não sei se com inocência, das forças exemplares e picarescas que animam as vidas dos artistas e legou-nos as impressionantes Vite (vidas) dos pintores do Renascimento. As vidas dos artistas, devidamente testemunhadas, ganharam um suplemento artístico, em virtude das descrições de atribulações, intenções, canalhices, manias, etc. Vasari tornou a vida dos artistas incontornável e o caracter performativo algo a não descurar. É certo que há muitas anedotas de pintores que antecedem Vasari. Plinio regista algumas fábulas oriundas, julga-se, do mundo grego, e os chineses acrescentam-lhes algumas nuvens, umas pitadas de fantástico e um premeditado exagero. Não serei um biógrafo de JLB porque há outros que com rigor e aficção se têm dedicado a exumar os registos e os itinerários deste apóstolo da perfeição. Mas JLB faz-me sentir o romanesco como um dever biográfico – os artistas tornam a arte mais forte na medida em que se propõe ao mundo como criaturas lendárias, mesmo nos aspectos mais mesquinhos. O artista pode ser apenas aquele que nos excita com o modo como fabrica a sua lenda. E a lenda só pode ser a perfeição romanesca com que se encenam determinados instantes.